segunda-feira, 20 de abril de 2020

Califado - Uma Ótima Série Para Refletir Sobre Opressão

A série Califado (produção sueca adquirida pela plataforma Netflix) aborda o tema do Estado Islâmico no contexto do recrutamento de pessoas que não necessariamente tinham uma prévia familiaridade com o islamismo. Esse aliciamento é uma pauta bastante presente nesse século e causa muitos debates na geopolítica internacional, com diversas nuances a delimitar a fronteira entre a liberdade de exercício religioso e a prática terrorista.

Primeiramente, vamos à definição de califado, que trata-se da forma islâmica monárquica de governo. O líder religioso do califado é o califa, considerado pelos muçulmanos como um dos sucessores do profeta Maomé (na tradução do árabe, khalifa seria a abreviação de khalifatu rasulil-lah, expressão que significa Sucessor do Mensageiro de Deus).

A história narrada na série se passa entre a Síria (mais especificamente na cidade de Raqqa) e a Suécia (sobretudo na capital Estocolmo). Na ótima trama - que não deixa ponto sem nó -, Pervin vive o drama de tentar fugir da caótica Raqqa para retornar à Suécia. Sua esperança reside nos esforços da policial Fátima, que atua no Serviço Secreto Sueco e condiciona a ajuda a Pervin somente se receber informações sobre atentados terroristas prestes a acontecer no país nórdico. Pervin, então, acaba adentrando numa espionagem perigosa, colocando a própria vida em risco para obter as informações que seriam repassadas para Fátima. 

Enquanto o Estado Islâmico arquiteta os ataques, Ibrahim Haddad, conhecido por seus pares como O Viajante, tem a tarefa de não somente preparar os atentados como também de aliciar jovens suecas para levá-las à Síria, com a sacra promessa de aproximar suas almas de Alá. E ele faz isso com maestria, dificultando que a vítima perceba se tratar de um esquema sofisticado.

Com esses elementos, o enredo carrega uma riqueza de valores e sentimentos que são muito bem trabalhados nas excepcionais atuações do elenco, sobretudo de Pervin (anote o nome da atriz: Gizem Erdogan), cuja performance convence, envolve, emociona.

Nesse texto, não pretendemos aprofundar sobre como a história caminha até o seu surpreendente final. Queremos, isto sim, analisar os acontecimentos sob uma perspectiva abolicionista. E, acredite, Califado é um prato cheio para essa abordagem.

Pervin. Jovem, esposa de Husam e mãe da bebê Latifa, a quem se dedica em tempo integral. Uma mulher de fibra, que "veste" a fé islâmica na amargura da desilusão com a vida em Raqqa. Ela quer libertar a si e a sua filha de uma realidade violenta, arbitrária e opressora, onde em nome de Alá os homens subjugam as mulheres como se fossem objetos pessoais. Pervin luta com todas as forças físicas e psíquicas por uma abolição em relação ao Estado, à religião, ao patriarcado. 

Husam. Casado com Pervin, segue a doutrina do califado à risca mas vive em constantes transtornos psicológicos pelo trauma de ter matado crianças e pela completa aversão à idéia de ir para o fronte de luta jihadista. Husam não deseja se tornar um mártir, mesmo que isso o leve ao paraíso prometido. Ele quer apenas viver. E, se por um lado objetifica sua própria esposa, por outro, é ele próprio um instrumento do Estado Islâmico. Quando percebe que sua vida está efetivamente por um fio, se junta à Pervin na missão de tentar fugir daquela realidade.

Fátima. Insatisfeita com o andamento das coisas no seu ambiente de trabalho, encontra na sua informante Pervin a maneira de fazer a diferença e concentra todos os seus esforços em tentar impedir o ato terrorista que se aproxima. A opressão sofrida por Fátima dá-se exclusivamente no ambiente laboral e, naturalmente, afeta seu bem-estar psicológico e molda toda a sua conduta de resistir às negações dos superiores hierárquicos.

Sulle e Lisha. Duas irmãs, classe média, estudantes. Sulle, a mais velha, é questionadora e tem muitas críticas ao sistema sociopolítico sueco. Influenciada por Ibrahim, se reaproxima do islamismo e é seduzida na idéia de fugir para a Síria e viver profundamente sua relação com Alá. Lisha, a mais nova, é mais discreta e dá a entender que o sonho de Sulle não é o mesmo que o seu. Ledo engano. Acaba se mostrando mais radical que a própria irmã e vem por protagonizar uma das maiores reviravoltas na série.

Há muitos outros personagens importantes, como o próprio Ibrahim (O Viajante), o pai de Sulle e Lisha (que dá uma aula de interpretação na sequência em que descobre que suas filhas fugiram), Nadir (superior hierárquico de Fátima no Serviço Secreto Sueco), entre outros.

Mas se focarmos especificamente em Pervin, Husam, Fátima, Sulle e Lisha, já conseguimos ver a costura comum da luta contra a opressão, cada uma sendo travada conforme as suas visões de mundo absolutamente pessoais. E, nessa tecitura cotidiana, a busca por algo imaterial - que não raramente converge em um caráter religioso - por vezes leva a trajetórias que mais afastam do que aproximam do sagrado. Até porque, o caminho para Alá não precisa ser trilhado pela literalidade do Corão. Assim como o percurso até Deus não se dá estritamente pela estrada da Bíblia. A relação é íntima. E quanto mais lúcido for o entendimento de que nenhuma forma de opressão se justifica, faz-se desmoronar a estrutura de grupos que usam o nome do Criador para promover violência, roubo e barbárie. Um cenário que nos é bastante familiar dentro do próprio Brasil.

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