sábado, 30 de maio de 2020

Minneapolis: As Supremacias Que Matam Humanos Como George Floyd E Porcos Que Não Demos Nome

George Floyd, cidadão estadunidense, foi detido no bairro de Powderhorn, localizado ao sul do centro de Minneapolis. A acusação era de uso de uma nota falsa de vinte dólares em estabelecimento comercial. 

Algemado, deitado, imobilizado. Foi com George nessas condições que um policial daquele país, no "exercício de suas funções", prensou o pescoço da vítima contra o solo. O indivíduo vulnerabilizado informou que não conseguia respirar e que aquilo o iria matar. Ainda assim, o policial seguiu indiferente. Câmeras de vídeo registraram o assassinato nesse vinte e cinco de maio.

O racismo, institucionalizado nos Estados Unidos da América e em diversos países de história escravagista no mundo, fazia mais uma vítima fatal. Seria uma vítima anônima se não fosse o registro das imagens. Mas essa, com nome, sobrenome e testemunhas, causou justa revolta em torno do corpo estendido no chão.

Seguiram-se protestos. Todos os quatro oficiais envolvidos diretamente na execução foram demitidos no dia seguinte. Importante lembrar que tanto Derek Chauvin (o policial que assassinou George) quanto os outros três policiais (identificados como Thomas Lane, Tou Thao e Alexander Kueng) não são exceções à regra da prática corporativa. É comum e recorrente que pretos nos EUA sofram abusos em abordagens, detenções, julgamentos. O racismo passa longe de ser um caso isolado. O racista, este sim, precisa ser isolado do convívio social.

Os protestos, que iniciaram de forma pacífica, mais tarde envolveram manifestações de depredação. Nenhuma depredação, seja ela um vidro quebrado ou uma parede incendiada, pode ser comparada ao dano físico infligido a um ser senciente. A vida de George Floyd e de qualquer outro indivíduo vítima do racismo, dentro e fora dos Estados Unidos, é muito mais importante que qualquer propriedade privada eventualmente danificada. 


É absolutamente legítima a revolta popular que se verificou em Minneapolis. Com exceção de uma. Um dos manifestantes exibiu uma cabeça de porco enquanto protestava. Provavelmente, uma mensagem direcionada à polícia estadunidense - o porco, animal dócil e sem qualquer manifestação racista em sua trajetória evolutiva, é usado como xingamento e depreciação para uma corporação que abusa, agride, violenta e mata inocentes. Evidentemente, uma analogia totalmente fora de propósito e de caráter fundamentalmente especista.


Se fosse um cartaz retratando um porco, já seria grave pelo simbolismo. Mas uma cabeça? Um indivíduo inocente ser decapitado para servir de alegoria em uma manifestação contra o racismo? Isso é eticamente indefensável. E somente seremos capazes de desconstruir o racismo quando formos capazes de entender que tanto ele quanto o especismo compartilham de uma origem idêntica: a idéia de que um grupo possua menos valor intrínseco do que outro e possa vir a ser subjugado para qualquer finalidade arbitrada pelos supremacistas. É assim que brancos oprimem pretos. É assim que homens oprimem mulheres. É assim que humanos oprimem porcos. E é enfrentando todos os mecanismos discriminatórios, conjuntamente, que poderemos libertar cada vulnerável e, finalmente, fazer o mínimo de justiça no mundo. Do contrário, continuaremos vivendo, morrendo e manifestando a barbárie.

terça-feira, 26 de maio de 2020

A Série Rotten - Uma Crítica Necessária

Rotten é uma série documental de abordagem sociocultural, socioambiental e socioeconômica - não necessariamente nessa ordem. Com um caráter investigativo e questionador, possui uma narrativa fiel ao que propõe. Mas, afinal, o que Rotten propõe?

Até o momento dessa publicação, assisti cinco dos dez episódios disponíveis na plataforma Netflix, sendo três da primeira temporada e dois, da segunda. Foi possível perceber que todos esses cinco episódios apresentam algumas similaridades no fio narrativo. 

Um ponto positivo rapidamente identificável é a argumentação crítica que, em tom quase de denúncia, mostra as diversas perversidades sistêmicas - notadamente partindo de relações espúrias entre governos e grandes corporações. Por outro lado, há pelo menos um (grave) ponto negativo: é que a série, com sua retórica fundamentalmente materialista, acaba dando vida ao capital e objetificando aqueles que vivem. E é precisamente sobre esse desserviço que a presente publicação procura tratar.

Para abordar essa postura objetificadora de seres sencientes, utilizaremos como referência o terceiro episódio na primeira temporada, intitulado Raposas No Galinheiro. São aproximadamente 51 minutos de duração e, na descrição oficial deste episódio, consta: "O implacável e lucrativo mercado de produção de frangos acaba jogando os criadores uns contra os outros, deixando-os vulneráveis a atos ilícitos". 

Eis que a primeira imagem - aquela que abre o episódio - é a de um galináceo passeando sobre um gramado em ambiente aberto. E, já no primeiro minuto do episódio, surge o vocabulário que dará o tom da coisa: "Precisamos cultivar mais carne", naquelas que foram as primeiras palavras do primeiro explorador a cometer uma declaração no presente episódio.

Nesse momento, você que faz a leitura pode até pensar algo do tipo: "Essa é a visão e a linguagem do explorador de frangos, o que não necessariamente representa a perspectiva e o tratamento oficial dos autores da série". Pois bem, eis que não demora muito - são cerca de onze segundos no relógio - para que a narrativa oficial profira o endosso daqueles termos: "uma indústria que cria e colhe vidas".

É exatamente isso: o sistema que massacra milhões de frangos diariamente foi categorizado como "uma indústria que cria e colhe vidas". Se o verbo criar já é por si só polêmico, o que dizer do verbo colher nesse contexto? É como se cada frango fosse transferido do reino animal para o vegetal e sua execução passasse a receber o simpático rótulo de colheita. Você consegue imaginar uma matéria nas páginas policiais com a seguinte manchete: "Assassino em série colhe a terceira vítima"? Se isso soa estranho, que bom, pois assassinato e colheita não estão no mesmo campo semântico.

O episódio avança (cerca de dezessete minutos) e expõe um caso onde um indivíduo teria invadido unidades de confinamento de galináceos para, num ato de sabotagem, matar centenas de milhares de indivíduos. Indivíduos que já seriam mortos, mas que, com o ato ilícito do sujeito, veio por causar prejuízos econômicos aos "criadores" que tinham agendado a "colheita" de seus escravos. Por se tratar de um crime contra a economia e contra a propriedade (afinal, trata-se aqui de uma invasão e de uma execução não legalizada), podemos ver que o vocabulário narrado na série muda: "O assassino entendia de aves". Exatamente: dessa vez, aquele que mata animais é finalmente chamado por aquilo que é - assassino. Um termo bem diferente de algo ou alguém que "cria e colhe vidas", não é mesmo?

Fica evidente que o assassinato, na visão da série, não se dá em função da ação de matar alguém. O assassinato se dá em função da (i)legalidade do ato. Ou seja: aquele que mata causando prejuízo econômico a outrem, comete um assassinato. Já aquele que mata sistematicamente conforme os ditames industriais, realiza uma colheita. Essa abordagem é temerária e mostra como o viés capitalista se sobrepõe à própria dimensão ética.

Minutos depois, essa posição fica ainda mais explícita ao se referir a James Lowery, o principal suspeito da matança não agendada de animais: "Se (a alegação) fosse verdade, Lowery havia cometido um crime único: assassinato de frangos em série, aproveitando-se das grandes criações do mercado de frango". Aqui se escancara o viés pró-capitalismo e anti-vida: enquanto o ilegal comete assassinato em série, o institucionalizado apenas realiza grandes criações. Para o frango, sabemos bem, o crime é rigorosamente o mesmo. Portanto, os termos empregados também deveriam ser.

Apesar disso, o episódio traz informações relevantes (e ao mesmo tempo assustadoras): "Desde a década de 1950, a quantidade de aves criadas nos EUA aumentou 1.400%, enquanto o número de criadores despencou 98%" (grifo nosso). Isto é, são cada vez mais indivíduos sendo executados pelas mãos (leia-se lâminas) de grupos cada vez mais poderosos. O assassinato em série - no nosso vocabulário abolicionista não encaixa o termo "grandes criações" - está deixando mais vítimas fatais do que jamais houve na história e, ao mesmo tempo, está concentrando renda nas mãos de menos gente.

https://outraspalavras.net/ojoioeotrigo/wp-content/uploads/2018/01/Netflix-Rotten-Large.jpg


O que deixa a discussão mais interessante é quando entra a JBS nessa ciranda de sangue. A série é incisiva na crítica a essa megacorporação de origem brasileira. Só que não pelo fato de ser a maior assassina de animais terrestres no planeta, mas por ter pego uma significativa parcela de clientes ao adquirir empresas estadunidenses, entrando com o pé na porta no mercado global de proteína animal (leia-se cadáveres animais). A aquisição da Pilgrim`s Pride pela JBS alavancou essa dominância competitiva e isso parece incomodar mais os documentaristas da série do que o fato de que o negócio lucrativo se fundamente no massacre de indivíduos sensíveis. Até porque, era exatamente assim que funcionava na "colheita" dos antigos proprietários do negócio.

Quando descreve as práticas corporativas da JBS, o termo usado por Rotten não é nem "assassinato" nem "colheita". Eles ficaram mais ou menos no meio do caminho - a palavra escolhida foi "abate". Ou seja, o crime da maior produtora de frango do mundo é mais brando que o de um sabotador pessoa física e mais grave que o dos criadores estadunidenses

Nas palavras de Wesley Batista, fundador do grupo JBS: "Por dia, processamos cerca de 12 milhões de aves". Não, o sr. Wesley e a JBS não estão reivindicando indenizações às suas vítimas. "Processamos", aqui, é um eufemismo para a execução sistemática. Ou, para assassinato em série.

A "otimista" mensagem final vem do "criador" Reid Phifer (o mesmo que iniciou o episódio sentenciando que "precisamos cultivar mais carne"). Nas palavras dele: "O frango vai continuar prosperando, pode crer". Evidentemente, não há "prosperidade" alguma numa vida onde o próprio corpo é uma mercadoria com data para ser retalhada. Na mente do "criador", o ser frango já foi suprimido até como idéia, dando lugar ao negócio. E é à prosperidade do negócio de massacrar frangos que ele se refere.

Caro sr. Reid, deixa eu te contar uma coisa: frangos, assim como você e eu, possuem a capacidade de experienciar alegria, prazer, dor e sofrimento. Não vieram a este mundo para servir aos humanos (como se fossem uma espécie inferior), da mesma forma que pretos não vieram a este mundo para servir aos brancos (como se fossem uma raça inferior), bem como mulheres não vieram a este mundo para servir aos homens (como se fossem um gênero inferior). Por mais que te pareça absolutamente normal criar, engordar e colher frangos, isso ainda é a reprodução, confinamento e execução de seres sencientes. A etapa mais moderna - e mortal - da escravidão.

Somente a libertação é justa. E ela, com o tempo, há de refletir no próprio vocabulário.